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  • Aguinaldo Moreira de Souza¹

Num Circo dos Horrores - A Mágica Beleza da Cia Fundo Mundo


NUM CIRCO DOS HORRORES - A MÁGICA BELEZA DA CIA FUNDO MUNDO/SC

Aguinaldo Moreira de Souza¹

Aconteceu no dia 30 de novembro de 2020, na Flick Escola de Circo, o espetáculo “Sui Generis”, da Cia Fundo Mundo, de Florianópolis/SC. Para além da força de resistência que o evento em si significa, há que se ressaltar a beleza da precariedade e a ética artística que emana deste momento: um espetáculo carregado de denúncias e simbologias da opressão num espaço pedagógico e lúdico faz jus à natureza do circo – a busca de comportamentos corporais sobre-humanos e de uma ética de sobrevivência.

A apresentação integra um projeto de intercâmbio do espetáculo Grazzi-Ellas, da Cia Teatro de Garagem, com outros três grupos de trabalho com abordagem ou concepção partindo da visibilidade da pessoa trans. Numa proposta visionária, Rafael Avancini, a partir do espetáculo protagonizado por Melissa Campus, pensou uma fecunda possibilidade de intercâmbio, na qual, financiados pelo Promic, três grupos que já abordam a experiência do corpo trans em espetáculos artísticos viriam a Londrina, oferecendo-nos um espetáculo e uma roda de conversa com a Atriz Melissa Campus.

Na vez, Londrina recebeu a Cia Fundo Mundo e seu espetáculo “Sui Generis’. A artesania e o improviso tomaram conta da rotina daquele dia, iniciada as 9 da manhã para preparo do espaço: monta e desmonta, corta e costura, dança e ri. Os anfitriões da Flick, nos receberam e acolheram o projeto - naquelas louváveis atitudes que só quem já se apresentou sobre palha de arroz entenderia. Perto das 19 horas, parecia que o espaço estava plenamente adaptado. Ledo engano, após a configuração física do espaço, as energias contrastantes advindas das pessoas que ali estavam iniciou uma nova exigência: o compartilhamento das diferenças extremadas.

Chegada a plateia e realizadas a cenas, instaura-se um vazio existencial: ninguém estava, ou estaria pronto para a experiência. Eram muitas camadas de singularidade, subjetividade e corporeidade. Nossos hábitos de recepção, nossos vícios de teatralidade e nossa pouca experiência no campo da empatia com a diferença nos colocam uma barreira quase intransponível para assuntos tão sui generis. Um olhar burguês e colonizado identificaria a precariedade e a aparente falta de técnica teatral (ou melhor: os vícios de correção, limpeza e tônus) como defeitos indesculpáveis. Uma capacidade mais reflexiva e aliada ao contexto performativo (facilmente substituíveis por empatia e bom senso) conseguiria aos poucos observar uma revolução – a vida surgindo nas falhas, nos recortes, nas cicatrizes e na ironia.

Inicialmente, a plateia teria que superar a estranha sensação de falta de pertencimento, pois a mesma estava muito longe dos horizontes apresentados. Para quem vive no senso comum, trabalhando, descansando e vendo TV, foi um impacto desestabilizante - a começar pelo mais evidente e assumidamente representado: o elenco era composto integralmente por pessoas trans (esse cyborg que ameaça a estabilidade da vida heteronormativa). Trocando em graúdos: todos os homens tinham vagina e todas as mulheres tinham pênis. A partir daí, somos obrigados a reconfigurar os contextos habituais, que colocam as pessoas trans na margilinadade e aceitá-las como protagonistas do discurso, da atuação e da dramaturgia. A artisticidade se instala na própria existência, quando as pessoas iniciam uma transição para modular sua aparência de modo a identificar-se consigo para, assim, encenar a sua presença no mundo como representação de sua essência, nada seria mais humano e performático que isso.

Um espetáculo de circo, desde suas origens, pauta-se por extraordinariedade, aberração, superpotência, bestialidade ou ingenuidade extrema. A hipérbole e o ilusionismo são os principais recursos do circo e revela-se em paradoxos corporais que trazem profundas imagens simbólicas: a bailarina do ar e a mulher barbada; o trapezista e o anão; o homem mais forte do mundo e o palhaço; o mágico e o motoqueiro do globo da morte. Cada artista, a seu modo, aprofunda seu estudo comprometendo seu corpo com a atividade. Um contorcionista e um fisioculturista, por exemplo, usam habilidades corporais natas e um treinamento intensivo para realizar seus números. Neste sentido chama atenção novamente o grupo, que nem nas modulações corporais voluntárias, um corpo trans-formado. Ao trabalhar suas performances nos aparelhos (como trapézio, tecido e lira) um artista tem alterações biotípicas em várias níveis, o que é bastante claro, por exemplo, em bailarinos e atletas, que nunca se livram das aculturações do corpo.

Neste ponto, há que se perceber a originalidade da questão e a singularidade que traz a Cia Fundo Mundo, pois em Sui Generis fica evidente uma dupla transformação: o corpo trans–artista circense, duplamente aberrante, extraordinário e revolucionário. Abre-se uma fenda na nossa percepção da realidade, para que possamos purgar nosso inferno e reaparecer num céu de inteligência, empatia e humanidade. Talvez muitos fiquem no caldeirão fervendo, mas a Cia Fundo Mundo, neste projeto, oferece um fio de Ariadne, para que as pessoas possam chegar à compreensão de que as aberrações maiores estavam sentadas na plateia.

¹Aguinaldo Moreira de Souza - Ator e performer, professor do Curso de Artes Cênicas da UEL, integrante do projeto Grazzi-Ellas TRANSitando.

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